Becoming, de Michelle Obama, é aula sobre lugar de fala
Documentário retrata a turnê de divulgação da autobiografia da ex-primeira-dama dos Estados Unidos pelo seu país enquanto discorre sobre sua jornada de transformação interior.
“Estive em cúpulas, castelos, palácios, salas de diretoria e universidades acadêmicas. Estou descendo do topo da montanha para dizer para cada adolescente que é pobre, da classe trabalhadora e que ouviu, assim como eu, que esse lugar não é para você. Não dê ouvido a isso”, diz Michelle Obama, 56, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, em uma das cenas mais emocionantes do documentário Becoming (Minha História, em português), que discorre sobre a turnê de divulgação de sua autobiografia de mesmo nome, que passou por 34 estados norte-americanos, e estreou esse mês na Netflix.
Produzido pela Higher Ground, novo empreendimento do casal Obama que esse ano faturou o Oscar de melhor documentário com American Factory (Indústria Americana, em português), o longa remonta a história de Michelle a partir da infância no subúrbio de Chicago, passando por momentos emblemáticos da sua vida, como seu ingresso em Princeton e, mais tarde, em Harvard, onde tutelou o futuro marido, então calouro na instituição, para avançar sobre os dilemas que viveu a respeito de carreira, casamento, maternidade, depressão pós-parto e ascensão à Casa Branca.
Tais passagens, centradas em sua figura confiante, dão o tom de legado pretendido por ela na narrativa de sua trajetória especialmente direcionada a uma pauta urgente no mundo contemporâneo, a do feminismo interseccional, compromisso que ela verbaliza diversas vezes em rodas de conversa com meninas e mulheres negras, latinas e indígenas na película.
“Não podemos nos dar ao luxo de esperar que o mundo seja justo para começarmos a nos sentir vistas. A gente está longe disso. Isso não vai acontecer com um presidente ou uma eleição. É preciso encontrar as ferramentas dentro de nós mesmas, para nos sentirmos visíveis, sermos ouvidas e para usarmos a nossa voz”, avalia Michelle.
Fato é que, como ela mesma diz, a experiência à frente da Casa Branca moldou sua personalidade. Envolvida em diversos projetos sociais nos oito anos em que ocupou o cargo de primeira-dama, Michelle exalta no filme o momento atual como uma oportunidade de se redefinir como ser humano, sem o compromisso de dar o exemplo como primeira liderança negra a assumir o comando do país. Tal determinação se faz notar nos looks da turnê, selecionados pela stylist Meredith Koop que, apesar de fazerem link com a figura clássica da ex-primeira-dama que, tal qual Jack Kennedy, se consolidou como ícone de moda, aponta uma transição suave em brilhos, bordados, franjas, abrindo espaço para esse novo capítulo da vida de Michelle.
“A gente poderia dividir o guarda roupa da Michelle Obama entre antes e depois da presidência dos EUA, pois no primeiro período, percebe-se uma visualidade ainda presa aos moldes da branquitude, sem o poder do lugar da fala. A primeira dama alisava o cabelo, se colocava discreta e diplomata para não chamar atenção dos holofotes. Nesse período, nenhum estilista negro é supracitado nos seus looks”, avalia a stylist Jô Souza, idealizadora da Galeria do Conhecimento e docente dos cursos de Consultoria de Imagem, Visagismo e Branding Pessoal.
“Já no filme, percebe-se uma mulher vindo com força, soltando os cachos aos poucos. Apesar de a silhueta predominante ainda ser de alfaiataria, que remonta ao power dressing dos anos 80, ela acerta quando ousa, como no look todo Balenciaga, com um vestido amarelo com fenda sensual que revela as botas metalizadas e valoriza o formato triângulo do corpo dela. Deve apostar nesse caminho de desconstrução, com certeza”, afirma Jô.
Criadora do primeiro curso de pós-graduação na área, Jô comenta que a história de vida de Michelle Obama, contada hoje, em meio à polarização de ideias, é exemplo emblemático da necessidade das mulheres se assumirem como sujeito de suas narrativas, valorizando sua beleza e trajetória.
“O feminismo neonegro deverá ressignificar o seu espaço público para traduzir uma voz coletiva e articulada e, assim, alcançar o empoderamento das mulheres negras dentro das esferas pública e privada”, conclui Jô.
Em seu livro, best seller publicado no fim de 2018, Michelle diz que não pensa em seguir carreira política, porém, ela está sendo sondada por Joe Biden, candidato do partido democrata à presidência, a compor chapa com ele. A ver os próximos capítulos.
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